sábado, 27 de março de 2010

Narcisismo Exacerbado

- Amor, se eu morresse hoje, todas as minhas palavras se cristalizariam no tempo, como uma gota de chuva que cai e se torna um granizo, caindo brutalmente, invadindo o espaço de alguém.
- Minhas palavras não seriam esquecidas, nem por você, nem por ninguém. A impressão da minha morte prematura faria com que eu fosse admirado. Faria com que, de uma hora pra outra, as pessoas me amassem. Mas, amor, desculpe-me pelas palavras espinhosas e áridas que proferi em um momento insano. Desculpe minhas falhas, que também marcarão minha existência após minha partida.
- Todos os meus sentimentos sumirão, desculpe por eu não mais amá-la depois que eu me for. Todos os nossos laços desatarão, mas meu espírito lembrará de quão bom foi tê-la ao meu redor, e, por isso, levarei em minha essência o sentido que deu à minha nobre passagem por aqui.
- Se eu morresse ainda hoje, arrepender-me-ia de nada. Absolutamente! Fiz tudo que meu coração pediu, tudo que minha mente desequilibrada desejou eu dei e por isto, nada me passou em branco. Se fosse agora, ficaria contente por ter ao menos, na visão mais simplista do evento, ter nascido. Nascer me possibilitou descobrir a grandiosidade de morrer. Deixar de existir é a maior ferida que meu coração poderia sofrer, mas ao menos conhecerei a nobreza desta dor.
- Ainda repito: se eu morresse hoje, amor, imortalizaria meu nome. seria lembrado para sempre como aquele que morreu jovem, que morreu sem sequer viver o início da própria vida. Seria bom, pois assim minha lápide não afundaria em meio à poeira e a terra. Antes de cair no esquecimento da velhice e na obstrução de vidas, prefiro morrer aqui e agora, pois só assim terei dado sentido ao meu incessante empenho de conqquistar corações: eles não esquecerão o que fiz por eles.
- Mas, se não morrer hoje, espero pela minha morte como alguém que espera pelo trem que o levará para casa: sentado, porém feliz e satisfeito pelo dia árduo de trabalho.

Vã Esperança

Da morte não espero mais nada.
De mim, levou todos aqueles que amei.
Fez das minhas flores um cinzero de lamentos.
E do meu dia, um anoitecer cinzento.

Da morte espero simpatia, na verdade.
Espero que de mim, poupe-me apenas a dor.
Porque não suportaria sofrer na minha própria morte,
já bastando a dor que senti pelas outras.

Espero ser carregado,
como a chuva, pelas nuvens escuras,
e dela não ter medo.

Espero vê-la sorrindo.
que de mim faça seu amigo.
Para que encontrem-me meus amados.

O Cão Perdido

O cego segue por onde o guia segue.
O guia guia por onde o cego não sabe seguir sozinho.
Sozinho o cego não segue nem sequer por onde o guia segue.
Segue por que segue, e se segue, segue porquê o guia por ali segue.
Segura na mão, no braço, no espírito, na respiração do cego.
O cego segue os passos que o guia pisa.
Segue a música que canta nos seus ouvidos.
Ouve a música que o guia canta.
Canta para que o cego siga.
Segue, porque o guia segue o cego, que guia o cego que segue o guia, que guia o cego que é guiado pela guia do cão.
Late porque é música.
Música que o cego segue.
Segue porque tem que ir em frente.
Vai em frente porque tem que chegar.
Chega porque é o fim.
É fim porque o guia e o cego seguiram o caminho, um guiando o outro e não deixando nenhum para trás.
Atrás ficou o cão que se perdeu porque não tinha ninguém que o guiasse.
A guia do guia é a guia do cego e não a guia do cão.
O cão não guia, apenas acompanha.
O cego segue seguindo por onde o guia guia.

Movimento Contínuo

Enquanto o tempo passa o café esfria, as nuvens caminham no céu acinzentado e a boca retorce na mansidão do escurecer.
Enquanto o tempo passa o sofrimento se aproxima, a gente poupa o peito e a cada dia que passa uma nova lição é aprendida e cada vez mais ficamos fadados ao nosso próprio desejo.
Enquanto o tempo passa a lágrima rola, a memória se debate e o coração armazena mais uma dor conquistada.
Enquanto o tempo passa o braço estica, mais uma mão é apertada e somamos a cada dia um desconhecido novo em nosso círculo de conhecidos.
Enquanto o tempo passa o sorriso se abre, os olhos se abrem ainda mais e o sol continua a cultivar a esperança no solo árido da vida de alguém.
Enquanto o tempo passa o amor acontece, a paixão queima o coração e o beijo aparece naturalmente.
Enquanto o tempo passa desejamos que ele retorne, que a amargura desapareça e que a solidão deixe de ser companhia.
Enquanto o tempo passa cada um é um, cada um olha por si, o café esfria para todos e o tempo não deixa de avançar.

Olhar é diferente de ver

Sustentei-me através dos tempos somente de aparências.
Foram elas que possibilitaram a minha sobrevivência.
Se de aparência que me apresento, devo à minha nobre justificativa meu sucesso por onde passei.
Como algo é conhecido, numa segunda instância, apreciado e talvez enaltecido, senão pela aparência convidativa?
Meu coração jamais seria descoberto.
Minhas palavras jamais ouvidas.
Meu olhar jamais lançado.
Meu sentimento jamais retribuído se não fosse por minhas aparências amigáveis.
Quisera eu que tudo fosse o contrário.
Que o conteúdo sabido antes mesmo do olhar preconceituoso.
Da aproximação pelo aconchego e não pelas marcas.
Da paixão por identidade e não por cor.
Porém isto nunca aconteceu, tampouco acontecerá.
E foram pelas aparências, pelas imagens, pelos nomes que as vidas se construíram.
E eu, em meio a tudo isto, não pude evitar de me utilizar destas mesmas artimanhas.
Acabei sendo eu meu próprio cartão de visita.
Trajo-me bem por isto: para que desejem que eu esteja por perto e que se aproximem.
Afinal, se me descuido, julgar-me-ão sujo e talvez, meu conteúdo, vasto e rico, nem seja conhecido.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Fardos

Tantas foram as coisas que deixei para trás.
Não as pude carregar.
Meu corpo pequeno não aguentaria tanto peso nas costas, além do meu próprio.
Foram capas, máscaras, pessoas que cruzei no caminho de vinda que optei por deixar. Porém elas inscreveram em mim.
Marcas, rabiscos, etc.
Minha sorte é ser só um e assim, carrego coisas suficientes apenas para um.
Sorte é não ter mais dois ou três pares de braços, pois carregaria coisas desnecessárias.
Pudera eu ter apenas um e não um par, pois assim ou comeria ou beberia... ou fumaria ou beberia... ou apartaria um mão qualquer ou beberia...
Desta vez reconheço a minha fragilidade. Apenas um não carrega a sobrevivência sozinho e assim, precisa de outrem para viver.
Ninguém é o que é sozinho. Ninguém consegue viver sozinho. Ninguém sorri para si.
Sorte minha não ser um baú para estocar lembranças.
As boas, as más, as imparciais.
Um sim, um não, um irrelevante.

sábado, 6 de março de 2010

O Cego

Eu poderia ver como o cego vê: de um degrau menos impuro possível do mundo.
Um ver imparcial, sem pretender ver a beleza visível aos olhos e dessa forma, não me corromperia por alguém que tem os dentes mais alvos do que outros.
Eu também não perceberia a cor da pele e assim, escaparia automaticamente da rotulação social que há entre aqueles coloridos. Eu ouviria apenas a voz e dessa forma, apenas me aproximaria das mais doces possíveis e perceberia que não é a cor que nos define e sim aquilo que proferimos em alguma mansidão.
Eu não veria a ruína dos homens, tampouco avistaria as flores já bruxuleantes, sangrando, envergadas. Eu apenas sentiria. E seria dotado de emoção e por isto, saberia melhor conduzir minhas tormentas.
Não veria sequer um dia cinzento, apenas notaria-o como um dia mais fresco, onde o sol não apareceu completamente para castigar a todos. As nuvens percorreriam os céus sem que eu as notasse. Um dia nublado não faria meu humor deprimir, nem mesmo um dia de sol faria meu humor se alegrar.
Quando eu tiver o olhar e ver do cego, mesmo que pareça insano e impossível, eu poderei me libertar de todo e qualquer preconceito que ainda resiste nos péssimos produtos que consumo deste mundo que quer me vender cada vez mais.
Quando eu possuir discernimento suficiente para ver como o cego, então terei iluminado minha visão, e meu coração neste momento terá se enobrecido e não mais será necessário que eu seja cego para ver como ele vê.
Terei em mãos todas as ferramentas para cegar o mundo aos poucos. Não preciso que todos estejam para então eu me encontrar, quando eu mesmo esteja cego. Preciso apenas de mais um cego, para que ajude-me ver aquilo que ainda resisto.
Eu vejo muito e meu olhar e ver é muito superficial, muito embora ele pareça ser profundo. Talvez eu esteja atado à superficialidade de tudo que seja profundo.
Quando eu for cego, só então eu passarei a ver as coisas despretensiosamente.
(Escrito numa mesa de bar)